Oito linhas num papiro do século IV, de um
hipotético “Evangelho da mulher de Jesus”, voltou a colocar em cena não apenas
o estado civil de Cristo, mas também sua relação com a outra metade do
céu.
A reportagem é de Manuel Vidal, publicada no
sítio Religión Digital, 23-09-2012. A tradução é do Cepat.
Apesar de ser o personagem mais estudado e analisado pela
cultura ocidental, Jesus continua sendo um dos mais desconhecidos.
Pouco se sabe com exatidão sobre o homem que é venerado por um bilhão de
pessoas como o “Filho de Deus”. Séculos de manipulações apagaram as escassas
pistas sobre sua realidade.
E os Evangelhos? Tradicionalmente nos são
apresentados como textos históricos. Hoje, todos os teólogos reconhecem que a
partir deles não se pode escrever uma biografia de Jesus. “O Evangelho é
um testemunho dos crentes. O que os evangelistas contam não é história, mas
expressão de sua fé em Jesus Cristo”, explica o prestigioso e já falecido
teólogo holandês Edward Schillebeeckx.
Embora sendo difícil, a exegese moderna está demarcando
cada vez mais a figura de Jesus. Inclusive nos aspectos mais fechados ou
silenciados pela Igreja católica oficial. Por exemplo, a questão da
sua sexualidade ou de seu estado civil.
Jesus de Nazaré foi casado?
Para a Igreja católica o assunto da sexualidade
de Jesus foi sempre um tabu. A doutrina oficial só aborda esse tema para dizer
que Jesus foi um homem de verdade, com todas as pulsões de um homem,
mas que se manteve puro e celibatário em toda a sua vida.
Inclusive, em muitas ocasiões dá a sensação de que
a Igreja católica cai no docetismo (a heresia que
torna Jesus não um homem real, de carne e osso, mas um ser que,
embora tendo aparência humana, era na realidade “outra coisa”) na hora de
“limpar” a figura do Nazareno.
De acordo com a mais estrita ortodoxia
católica, Jesus era um homem completo, de corpo inteiro e,
consequentemente, sexuado. Deus se fez homem, e dentro dessa condição
existe a sexualidade. Como a exerceu? Que relação manteve com as
mulheres?
Os grandes exegetas concordam em negar
que Jesus tivesse casado. E que o celibato transgredia as leis
religiosas de sua época. “Quem não tem mulher é um ser sem alegria, sem a
bênção, sem felicidade, sem defesas contra a concupiscência, sem paz; um homem
sem mulher não é um homem”, diz o Talmude. E menos ainda, se esse homem
era um rabi, um intérprete da Lei que, portanto, não podia se opor
ao Talmude.
Um dos mais prestigiosos exegetas espanhóis, Xabier
Pikaza, acaba de publicar o “Evangelho de Marcos. A Boa Notícia de Jesus”
(Verbo Divino), um exaustivo estudo de 1.200 páginas. E sobre este tema conclui
assim: “Não se pode demonstrar, de maneira absoluta, que Jesus foi
celibatário”.
Alguns pesquisadores supõem que ele poderia ter sido
viúvo ou sem filhos. Outros, mais fantasiosos, falam de suas relações
com Maria Madalena ou de sua abertura afetiva mais aberta (um tipo de
“amor” estendido para homens e mulheres, de forma não genital). Enfim, outros
asseguram que, após a vinda do Reino (se houvesse chegado, sem que tivesse sido
morto), Jesus teria casado, iniciando um matrimônio diferente...
Porém, não sabemos nada disso. Nada pode ser apoiado em
fontes. A única coisa certa é que durante o tempo de sua pregação, a partir de
sua missão com João, passando por sua mensagem na Galileia, até a sua
morte foi “celibatário”.
Outro famoso teólogo espanhol, Rafael Aguirre,
sustenta a mesma tese. Ou como disse o americano John Paul Meier:
“Jesus nunca se casou, o que o torna um ser atípico e, por alcance,
marginal diante da sociedade judaica convencional”. Nisso sim, todos os
exegetas consentem, além de destacar o papel “especial” de Maria
Madalena na vida de Jesus.
Ela não foi sua mulher, mas esteve muito perto dele. No
grupo de mulheres que acompanhavam Jesus e seus discípulos, nunca está
ausente. É a primeira receptora dos acontecimentos pascais. Por isso, é chamada
“a apóstola dos apóstolos”.
“No entanto, casá-la com Cristo é um
disparate”, afirma o teólogo jesuíta Juan Antonio Estrada. O disparate do
“Código Da Vinci”, por exemplo, que muitos acreditam.
Discípulas e companheiras de Jesus
O que está claro em todos os textos evangélicos,
canônicos e apócrifos, é que a sua relação com as mulheres foi um dos aspectos
mais revolucionários do profeta de Nazaré.
Jesus rompe com todos os tabus, numa sociedade em
que a mulher era definida como uma “lua”, porque só brilhava e recebia tudo do
“sol”, que era o homem. “Dou-te graças, Senhor, por não me haver feito
mulher”, rezavam os varões todas as manhãs, pois a mulher era um ser inferior.
Por isso, andava sempre com a cabeça coberta, não podia
parar na rua para falar com um varão, não podia ser testemunha credível num
julgamento, tampouco podia ter herança e no caso de que seu marido morresse,
passava a ser propriedade de seu irmão. E, é claro, quando estava menstruada,
não somente era impura, mas tornava impuro tudo o que tocava.
“Jesus rompe com todas as tradições culturais de seu
tempo e trata a mulher como igual”, explica Pikaza. De fato, as mulheres
fazem parte de seu círculo mais íntimo, de seus mais estreitos colaboradores e
acompanham o profeta itinerante em suas caminhadas apostólicas. “Varões e
mulheres aparecem num projeto como iguais, sem prioridade de um sexo sobre o
outro”, sustenta o exegeta espanhol.
E o catedrático Antonio Piñero, em seu livro “Jesus
e as mulheres” (Aguilar), aponta que “Jesus foi um rabino relativamente
anômalo no cenário dos mestres da Lei do século I, porque teve um ministério
ativo, no qual as mulheres não apenas estavam presentes, mas eram
discípulas”.
De fato, o Evangelho de Marcos diz que as
mulheres “serviam” a Jesus. E o biblista argentino Ariel
Álvarez explica que “se estas mulheres “serviam” a Jesus, é porque de
alguma maneira pregavam o Evangelho, curavam enfermos, expulsavam demônios
e realizavam as mesmas funções dos demais discípulos, e não porque cumpriam
exclusivamente as tarefas de cozinha e limpeza”.
É que, como diz Pikaza, “Jesus não quis
sacralizar a sociedade patriarcal de sua época” e “fundou um movimento de varões
e mulheres na contramão dos rabinos de sua época, que não admitiam as mulheres
em suas escolas”. Jesus não somente as acolhe, mas escuta e dialoga
com elas, “como com pessoas livres”, respeitando e valorizando-as em igualdade
com o homem.
Mais ainda, Pikaza sustenta que dentro de seu
movimento, as mulheres foram as seguidoras mais fiéis e radicais de Jesus.
“De fato, ao chegar à prova da Cruz, os doze lhe abandonaram; elas, ao
contrário, permanecem fiéis até o final”.
Um Jesus, portanto, profundamente inclusivo, que
desafia frontalmente os preceitos patriarcais profundamente estabelecidos. Em
seu trato com a mulher, Jesus foi um revolucionário, um profeta que
desafiou o legalismo confuso e inerte que mesclava a vida religiosa e social de
seu tempo. Um visionário defensor dos direitos da mulher. Inteiramente um
feminista.
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