Lucas é intransigente em face da opressão econômica e quanto à exigência ética do cristianismo, mas, para fazê-la prevalecer, não se nega ao diálogo cultural e político, a fim de canalizar para o bem a força histórica do mal. Lucas percebeu, muito antes de Paulo Freire, que a melhor forma de amar os opressores é tirar das mãos deles as armas da opressão", escreve Frei Gilvander Luís Moreira, padre da Ordem dos carmelitas, mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblica, de Roma, Itália; é professor de Teologia Bíblica; assessor da Comissão Pastoral da Terra – CPT -, assessor do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos – CEBI -, assessor do Serviço de Animação Bíblica - SAB - e da Via Campesina em Minas Gerais, ao descrever as bases para uma Teologia da Missão dos jovens.
Eis o artigo.
As comunidades do Evangelho de Lucas e
de Atos dos Apóstolos – obra lucana - apresentam um rosto diferente
do rosto das comunidades da Judeia, da Samaria e da Galileia de cunho mais
rural, comunidades dos Evangelhos de Marcos e Mateus. Eis, abaixo,
seis características do rosto das Comunidades lucanas.
1. As comunidades
de Lucas são predominantemente comunidades urbanas, melhor dizendo,
das periferias das grandes cidades. No evangelho de Lucas, a palavra grega
polis, que, em grego, significa cidade, aparece 40 vezes; em Mateus, 26; e
em Marcos, 8. Nos evangelhos sinóticos (Mc, Mt e Lc), o ensinamento é
realizado, basicamente, a partir de imagens da natureza, do campo e do trabalho
rural (cf. ovelhas, pastores, videira, semente, semeador, etc.). No livro
de Atos dos Apóstolos, essas imagens não aparecem. Isso dá a entender que
são comunidades mais urbanas. De fato, no livro dos Atos dos Apóstolos, a
palavra cidade aparece 42 vezes.
2. Comunidades de pobres com alguns
ricos. Há um contraste que aparece, sobretudo, no evangelho de Lucas: de
um lado, os pobres, famintos, perseguidos, aflitos (Lc 6,20-23) e, do outro, os
ricos (Lc 12,16-21) que se banqueteiam sem se preocupar com a miséria dos
outros (Lc 16,19-31). Para as comunidades lucanas era importante “não dar murro
em ponta de faca”. No meio de uma correlação desigual de forças, melhor
infiltrar-se do que confrontar-se com império gigante. Lucas é
intransigente em face da opressão econômica e quanto à exigência ética do
cristianismo, mas, para fazê-la prevalecer, não se nega ao diálogo cultural e
político, a fim de canalizar para o bem a força histórica do
mal. Lucas percebeu, muito antes de Paulo Freire, que a melhor
forma de amar os opressores é tirar das mãos deles as armas da opressão.
3. Comunidades nas quais há cristãos
que continuam ligados às instituições do Império Romano (Lc 7,1-10). Lucas não
quer complicar ainda mais a situação dos cristãos que já estavam sendo
perseguidos quando o Evangelho, primeira parte da sua obra, fora escrito. Ele
demonstra simpatia pelos romanos ao dar a entender que a própria condenação
de Jesus foi motivada pela ignorância romana¹. Por uma tática de
sobrevivência, Lucas tenta passar a ideia de que as comunidades
cristãs não são revolucionárias, subversivas. Assim, não cutuca a onça com vara
curta, mas se prepara para cutucar com vara grande.
4. Comunidades que revelam um contexto
patriarcal e machista. As mulheres, de uma forma geral, eram desprezadas e
marginalizadas na sociedade. Mas no Evangelho de Lucas, Jesus dá
prioridade às mulheres², valoriza sua presença e atuação nas comunidades e na
sociedade. “Na narração do nascimento de João Batista e de Jesus (Lc
1,5–2,52) rompe-se o padrão que colocava o homem em primeiro plano e que
deixava à margem tanto a mulher como a criança. Nessas narrativas, as crianças
são apresentadas junto com a presença atuante de suas mães. Elas é que são
protagonistas da novidade, anunciadoras das “grandes coisas que o Poderoso fez”
(Lc 1,49)³, mesmo vivendo em um contexto patriarcal e machista.
5. Comunidades com pessoas cansadas,
medrosas, desanimadas e perdidas por causa da situação na qual viviam (Lc
24,13-24). Os cristãos são uma minoria perdida no meio de um imenso império,
nas periferias das grandes cidades. Apenas alguns milhares no meio de um
Império com cerca de 60 milhões de pessoas. Uns começam a abandonar as
comunidades; outros duvidam que Jesus seja o Salvador, têm
dificuldade de acreditar que seja possível viver em fraternidade e resistir ao
império com suas seduções opressoras.
6. Comunidades com diversidade de dons
os quais se articulavam por meio do cimento da solidariedade. Isso é ótimo,
pois o Espírito não se deixa encurralar e não aceita ser engaiolado; sopra onde
quer, como quer; é livre e liberta. Paulo reitera diversas vezes:
“Não percam a liberdade cristã!” (2Cor 3,17); “Não entristeçam o Espírito
Santo!” (Ef 4,30).
Oxalá esse simples texto ajude na compreensão
do Evangelho de Lucas e, principalmente, nos inspire na construção de
comunidades que, de fato, tenham um rosto parecido com o rosto das Primeiras
comunidades cristãs.
Notas:
[¹] Cf.
Lc 23,34; At 3,17; 7,60; 13,27; 16,29-40; 18,12-17.
[²] Cf.
Lc 7,36-50; 8,1-3; 10,38-42; 13,10-17; 15,8-10.
[³] VASCONCELLOS, P. L. A Boa Notícia segundo a
comunidade de Lucas. São Leopoldo, CEBI, 1998. p. 37. (Coleção A Palavra na
Vida 123/124)
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