OLHANDO O CONTEXTO
O texto sobre o qual vamos
refletir hoje faz parte do conhecido complexo que trata da relação entre o
pastor e o seu rebanho (Jo 10). Busca-se, nesse capítulo, responder à questão:
quais são os fundamentos da relação entre Jesus e sua comunidade. O trecho em
foco, João 10,27-30, nasce, como tantos outros, do confronto entre Jesus e um
grupo de judeus. Discute-se, aqui, como se pode estabelecer uma relação
autêntica e duradoura com Deus. Para alguns judeus, o templo é a base desse
relacionamento.
O confronto se deu quando
Jesus estava no templo por ocasião da Festa da Dedicação ou da Purificação.
Essa festa lembrava a purificação do Templo de Jerusalém, na época dos
macabeus, três anos após o altar do templo ter sido profanado, ou seja, ter
sido usado para oferecer sacrifícios ao Deus maior dos gregos, Zeus. A festa
representava, portanto, a expulsão dos elementos estrangeiros do centro
religioso da comunidade e a recuperação da identidade judaica baseada na pureza
ritual e no exclusivismo étnico e religioso.
O templo era, sem dúvida, um
dos mais importantes elementos de agregação da comunidade judaica e, por isso,
da preservação da sua identidade. Mas essa identidade estava sendo ameaçada com
as afirmações que Jesus fazia sobre si, sobre Deus e sobre a natureza da
relação com Deus. Jesus propunha uma relação com Deus, na qual a fé e a
confiança são determinantes. Fé e confiança como base de uma relação de amizade
sustentável com Deus e entre as pessoas costumam dispensar normas de pureza e
ritos estipulados pela Lei. As pessoas que aderiam a essa proposta de Jesus
passaram a desconsiderar as tradicionais normas de vida estabelecidas pela
centralidade do templo. Isso podia ser entendido como ameaça à identidade de
diversos grupos no judaísmo.
Nessa controvérsia acerca
dessas duas propostas de viver a fé, o evangelho de João vai insistir que
identidade e coesão da comunidade somente; são possíveis em torno do projeto e
da pessoa de Jesus. A pessoa de Jesus representa, no evangelho, essa nova
maneira de construir a relação com Deus baseada na confiança e na amizade e,
assim, de criar uma nova identidade que não mais depende das exigências de
pureza do templo nem de restrições étnicas e religiosas do judaísmo.
DEGUSTANDO O TEXTO
V.27 As minhas ovelhas conhecem a minha voz, eu as conheço, e elas
me seguem.
Conhecer e seguir: esses dois
verbos indicam a profundidade da relação entre Jesus e as pessoas que em torno
dele se congregam. Conhecer não é apenas algo racional e teórico, mas expressa
uma relação existencial, profunda, quase íntima. Conhecer Jesus significa ter
experimentado a presença do Deus que liberta e dá vida plena.
Conhecimento baseado na experiência: é isso que dá segurança às pessoas e as
impulsiona ao seguimento. Seguir a Jesus significa aderir a seus
ensinamentos e suas propostas e ser cúmplice de seu projeto. Aderir
a essa proposta de relação de confiança com Deus implica vivê-la. É, portanto,
uma decisão pelo discipulado.
V. 28 Eu lhes dou a vida eterna; jamais perecerão e ninguém as
arrebatará da minha mão.
Em meio a um ambiente hostil,
onde diversas vozes se levantavam para destruir a comunidade que começa a se
formar, a pessoa de Jesus oferece segurança. As “ovelhas” ameaçadas pelos que
querem dispersá-las podem ter a certeza de que não irão ao “matadouro”, pois
Jesus já as conquistou com a sua vida para a eternidade. Sua promessa para quem
ouvir sua voz e seguir sua proposta é de vida eterna. Num ambiente hostil, a
confiança e a fé tornam-se os elementos aglutinadores para os seguidores de
Jesus. Fé, confiança e vida solidária dão as forças necessárias para a
comunidade continuar resistindo.
V. 29 Meu Pai, que me deu tudo, é maior que todos; e da mão do Pai
ninguém pode arrebatar.
Todas as pessoas que estão
coesas e comprometidas em torno de Jesus podem ficar tranquilas e seguras, pois
é Ele quem nos protege contra a ameaça de cair em mãos inescrupulosas e
escravizadoras. A verdadeira comunidade que segue os princípios de Cristo não
poderá ser arrebatada ou destruída, porque Deus é mais forte do que
tudo e todos. Outra versão também é possível: Aquilo que meu Pai me deu é
maior do que tudo. Nesse caso, pensa-se normalmente na autoridade
concedida pelo Pai ao filho. Mas talvez seja possível pensar também na
comunidade como o maior bem que Jesus recebeu de Deus. Esse bem precioso ficará
bem guardado sob a proteção de Deus.
V. 30 Eu e o Pai somos um.
Esta é a afirmação que causa
grande escândalo entre os judeus e que faz do cristianismo uma fé singular: é
na humanidade de Jesus de Nazaré que encontramos Deus em sua
concretude e humildade. É na vida, nos ensinamentos, nas ações, no
comportamento, na paixão, na morte e na ressurreição de Jesus que Deus se
revela aos seres humanos. Em e através de Jesus, Deus se fez
presente e se revelou a toda humanidade. Na comunhão dos que buscam uma vida
que se assenta na confiança em Deus e na solidariedade entre as pessoas, ele
continua a manifestar-se ainda hoje.
AMPLIANDO A MENSAGEM
Ouvir, conhecer, confiar e seguir
são atitudes fundamentais para o discipulado. Jesus não é um senhor
de escravos, que domina, coloca o cabresto ou prende suas “ovelhas” dentro do
curral. Em sua vida mostrou-se como quem está a serviço dos que o seguem, que
se interessa pelo bem estar de suas ovelhas, que caminha junto com elas e as
conduz em e para a liberdade. A sua relação com as pessoas está
baseada na confiança e não na troca de favores ou na
manipulação de pessoas em benefício próprio. Em Jesus, o Deus da vida, da
misericórdia e da justiça se manifesta e nos convida a segui-lo.
A metáfora das ovelhas
representa a vivência coletiva, já que elas não andam sozinhas, mas em grupo. A
imagem nos desperta para olharmos para o outro e para a outra. Ela nos convida
a romper com o individualismo que nos escraviza. Ela nos chama para a atuação
em comunidade, estabelecendo relações de familiaridade, solidariedade e
serviço.
Crer é aderir à proposta de
Cristo. Isso implica seguimento e compromisso. Talvez a nossa
decisão pelo projeto de Jesus possa redundar em conflitos com mentes prontas e
tradições estruturadas. Mas para essas pessoas existe a promessa de que não
serão afastadas da comunhão com Deus porque estão guardadas em suas mãos.
Texto de Sônia
Mota é pastora presbiteriana (IPU) e Nelson Kilpp é pastor luterano (IECLB).
Ambos são colaboradores do CEBI.
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