segunda-feira, 29 de agosto de 2011

O REINO NO EVANGELHO DE MATEUS

Mateus apresenta Jesus com o título de EMANUEL (Mt 1,23) que significa Deus está Conosco, o reino está conosco! e termina afirmando “Eu estou convosco todos os dias” (28,20b).
Distribuído em 28 capítulos, subdividido em 1068 versículos, o primeiro Evangelho insiste com veemência num termo que desperta atenção: o reino. Enquanto a ocorrência é de 40 vezes no Evangelho de Lucas (24 cap. e 1160 vers.) e em Marcos de 16 vezes (16 cap. e 661 ver.), na narrativa Mateana  percebe-se 55 referências ao reino.

O termo é encontrado com as seguintes abordagens diretas de Jesus: Reino dos Céus (Mt 3,2; 4,17; 5,3; 5,10; 5,19; 5,20; 7,21; 8,11; 10,7; 11,11; 12,12; 13,11; 13,33; 13,44; 13,45; 13,47; 13,52; 16,19; 18,1; 18,3; 18,4; 18,23; 19,12; 19,14; 19,23; 20,1; 22,2; 23,13; 24,14; e 25,1); Evangelho do reino (4,23; 9,35 e 24,14); Reino do Pai (6,10; 6,33; 13,43; 26,29 e 25,34); Reino de Deus (6,33; 12,28; 19,24; 21,31 e 21,43); Palavra do reino (13,19) e Reino do Filho (13,38; 13,41; 13,43; 16,28 e 20,21). E em outras ocasiões o termo é empregado por João Batista (3,2), pelo diabo (4,8), pelo narrador (9,35), pelos discípulos (18,1) e pela mãe dos filhos de Zebedeu.

Entre as vinte e duas parábolas desse Evangelho vamos encontrar em onze (a metade) delas começando com “o reino dos céus é semelhante a...” o joio e o trigo (13,24-30), o grão de mostarda (13,31-32), o fermento (13,33), o tesouro num campo (13,44), o negociante de pérolas (13,45-46), a rede (13,47-50), o devedor implacável (18,23-25), os trabalhadores da vinha (20,1-16), o banquete nupcial (22,2-14), as dez virgens (25,1-13) e os talentos (25,14-30).

A incidência com tamanha freqüência nos permite perceber o encantamento de Jesus em manifestar aos discípulos e ao povo do seu tempo a plenitude da felicidade possível a partir da vivência daquilo que ele ensinava: o reino. Entretanto, se observarmos o documento que passou a chamar-se Evangelho Segundo Mateus e tendo presente que estes textos estão disponíveis porque uma pessoa ou uma comunidade (o que parece mais provável!) registrou o conjunto das informações, com toda certeza pode-se vislumbrar de igual forma o encantamento pelo reino também de parte da comunidade Mateana. O nome atribuído ao Evangelho (Mateus) significa doado por Deus e esta narrativa que evoca o REINO certamente quer nos apresentar como o melhor presente de Deus para nós: o reino de Deus.  

Jesus se mostra a nós como encantado pelo Reino. A comunidade de Mateus se mostra também encantada pelo Reino. E nós, já somos também encantados pelo reino? Já estamos encantados pelo reino? Já conhecemos esse reino? Será que um dia nós também nos encantaremos com esse reino e o compreenderemos? E somos ou seremos capazes de cooperar para a instalação deste reino?

Diversas personagens retratadas no Evangelho não compreenderam este reino. Herodes, Pilatos e Caifás são apenas alguns daqueles que não compreenderam, mas não foram os únicos. João Batista que preparara os caminhos do Senhor pregando o batismo do arrependimento, insatisfeito com a demora da instalação do reino, manda perguntar lá da prisão: “És tu aquele que deve vir, ou devemos esperar outro?” (11,3). Pedro, logo após reconhecê-Lo como “o Cristo, o Filho de Deus vivo” (16,16), quer impedi-Lo de cumprir o seu papel e é chamado de Satanás (16,21) – aquele que é contrario a Deus. A mãe dos filhos de Zebedeu quer um lugar de honra para seus filhos (20,21) nesse reino de Jesus.

Ao percebermos que ainda não compreendemos o reino apresentado por Jesus, ou se já o compreendemos, mas não conseguimos vivenciá-lo, talvez pela oração, como tantas vezes Ele mostrou, podemos pedir que venha a todos nós esse reino. Sabemos que a mensagem do Reino só será compreendida e vivenciada no dialogo com o próprio Jesus.

Ao mesmo tempo em que percebemos na narrativa a presença de 55 vezes a palavra reino, há uma outra presença constante e até mais acentuada na referencia a reis, governadores e sumo-sacerdote, quando se encontra em 77 versículos a eles referidos. Há referencia a 15 reis desde Davi até Jeconias (1,6-11), 16 referencias específicas ao rei Davi, sendo que Herodes Magno é citado 10 vezes e Herodes o Tetrarca aparece 5 vezes. Salomão é lembrado em 5 citações, César em 4, o Sumo Sacerdote Caifás é referido 7 vezes e Pilatos o governador é nominado 17 vezes.

O reino que é apresentado com encantamento por Jesus e pela comunidade de Mateus é apontado com uma forte contraposição ao reino humano que naquela região estava instalado. Revendo a historicidade dos fatos é bom lembrar que em 63 a.C. a Judéia é tomada por Pompeu e passa a ser também uma província Romana. A conquista é seguida do domínio, com a nomeação de Hircano como sumo-sacerdote e Antípater como o governador da Judéia. O imperador romano Pompeu extrai a quantia de dez mil talentos como tributos da recém conquistada Judéia (Antiguidades Judaicas, Flavio Josefo). Este altíssimo tributo será lembrado mais tarde na parábola do devedor implacável (18,23-25).   Herodes Magno, filho de Antípater é o rei efetivo de 37 a 4 a.C.  
  
A forma de agir do rei – poder absoluto – lhe permite executar em 30 a.C. a Hircano II (avô de sua mulher) e em 29 a.C. é a esposa, Mariana I, que é executada. Os filhos Alexandre e Aristóbulo, que Herodes Magno tivera com Maria I serão, a mando do pai, estrangulados em 7 a.C. Os meninos de dois anos para baixo, ao tempo do nascimento de Jesus, terão a mesma sorte; serão mortos por ordem do rei (Mt 2,16).  

Com a morte de Herodes Magno o poder permanece na mão de seus filhos Arquelau, Herodes Antipas e Felipe seguidos por “praefectus” e procuradores (dentre estes o mais notável foi Pilatos de 26 a 36dC). O método não muda; o sumo-sacerdote é nomeado pelo rei e a elite religiosa (sumo-sacerdote, sacerdotes, levitas, doutores da lei, fariseus) é parte integrante do poder. É nesse contexto histórico que Jesus vem apresentar a mensagem do Pai.

Agora (um pouco antes de o evangelho ser redigido) é o Império Romano que está ditando todas as cartas até que, sob Vespasiano (de 69 a 79) pouco depois da Páscoa de 70, Tito ataca a cidade de Jerusalém, cessam-se os sacrifícios no templo que é incendiado, o palácio de Herodes e a cidade alta são conquistados e os habitantes são mortos, vendidos ou condenados a trabalhos forçados.

Diante deste quadro de domínio Imperial e de destruição do templo e da cidade de Jerusalém provocada pelos romanos no ano 70 a comunidade judaico-cristã que aderira ao ensinamento de Jesus interpreta estes fatos como uma punição divina. A parábola do banquete nupcial (22,1-14) parece retratar a situação vivida nesse tempo. Os convidados não vão ao banquete para o qual o Rei os convidara, entretanto, este manda incendiar a cidade. Nesta visão aparente de um castigo de Deus a história, os ensinamentos e as atitudes de Jesus parecem contrapor de forma bem clara a monumental diferença entre o reino dos homens (Império Romano) e o verdadeiro REINO/IMPERIO de Deus.

A opressão do reino humano até então instalado terá sua contraposição apresentada por Jesus como “Olhai as aves do céu; não semeiam, nem colhem, nem ajuntam em celeiros. E, no entanto, vosso Pai celeste as alimenta. Ora, não valeis vós mais do que elas?” (7,26). Do início ao fim do Evangelho Jesus estará em conflito com a coalizão de forças exercidas pelo Império Romano e a elite religiosa subserviente e interesseira (2,1-6; 15,1). O império mostrando o poder opressivo e absoluto já antecipados em 1 Sm 8,11 ss. e a elite religiosa (sacerdotes, anciãos do templo, fariseus) por causa de sua origem, riqueza, gênero, status sacerdotal, educação religiosa especializada, etnia e/ou posição social aderente ao sistema do jugo pesado sobre o povo.

Parece-nos importante a observação dos fatos relativos à forma de exercer o Poder a partir do rei e da elite religiosa e analisarmos esta contraposição reino de Deus x reino humano. O olhar nesta perspectiva nos permite facilmente promover uma acirrada crítica ao domínio e a opressão humanos sobre os seus semelhantes. A tentação no deserto nos mostra o Império Romano (o diabo) propondo os seus valores: ter, poder e prazer (3,2). Para não ficarmos apenas na crítica histórica ou crítica a terceiros propomos uma releitura no sentido de que esta contraposição do reino de Deus quer ser feita a um “império nosso”: o império do egoísmo/egocentrismo. Mais que crítica à instituição (poder) ou às autoridades (reis, governantes) talvez o endereço atual seja a nossa visão do EU acima de qualquer outra coisa.

A primeira abordagem de Jesus é um convite: repetindo a frase do Batista Ele propõe a metanoia, a mudança radical de atitudes (4,17 e 3,2). Em sua caminhada Ele chama seguidores “... e vos farei pescadores de homens.” (4,19). Os convidados serão dois irmãos: Pedro e seu irmão André, seguido de outros dois irmãos, Tiago e João, filhos de Zebedeu. Jesus cria então uma comunidade alternativa como antecipação do pleno reinado de Deus sobre toda a imperfeição. Esta comunidade alternativa já aponta claramente nos primeiros convites: a fraternidade.

O Sermão da Montanha mostrará Jesus, em primeiro lugar, muito parecido com Moisés. É importante esta semelhança, pois que o evangelho é endereçado prioritariamente aos judeus-cristãos (e a nós também!). Subiu a montanha (como Moisés) e seus discípulos (aqui a primeira vez que o termo aparece – seus seguidores) aproximam-se dEle isto é: ficam juntos. (Obs.: aproximar aparece 52 x em Mt, cinco em Mc, 10 em Lc uma em Jo). Nesse discurso que se prolonga do cap. 5 ao cap. 7, Jesus fará SETE (5,3.10.19.20 ; 6,10.33 ; 7,21)  referências ao reino. E ensinará o Pai Nosso, a oração por excelência, quando retoma uma visão abruptamente diferente: o Deus de nossos pais passa a ser Pai Nosso.

Felizes os pobres e os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus. As bem-aventuranças provocam uma virada do mundo de “pernas pro ar”. A idéia que se tinha (e que se tem) é que Deus abençoa (abençoava) alguns para terem uma grande fortuna, muito além daquilo que necessitam. Parece que estes é que eram/são os mais felizes... Para Jesus não é assim. Um certo reino do ter/poder/prazer não cabe no Reino dos Céus. A condição da fraternidade verdadeira, mostrada por Jesus, obriga a que, um dia, aqueles que têm muito serão obrigados a distribuir ou a entregar o que têm demais àqueles que nada tem; neste dia os ricos é que poderão sofrer “Ai de vós,ricos”(Lc4,24).

Estes pobres e estes perseguidos que são apontados no início e no final das bem-aventuranças estão neste estado de pobreza e perseguição por que? Será que por algum motivo do reino dos céus ou por razões ocasionadas pelo (nosso?) reino humano? O reino será para o futuro? É um conceito escatológico e que só se instalará no fim dos tempos? Jesus responde que o “reino de Deus chegou até vós” (12,28).

Durante nossas celebrações, diante da saudação do presidente nós temos uma resposta decorada... Vamos lembrar: O Senhor esteja convosco!... Ele está no meio de nós. E nós já compreendemos que estando Ele no meio de nós, aqui está instalado o Reino de Deus? O que falta então se já temos compreensão, mas não percebemos a efetiva presença do reino? Um “já e ainda não”.
Onde reina o amor! Fraterno amor! Onde reina o amor, Deus aí está!

Mas afinal, o que é e o que pode ser este reino que Jesus indica. Será algo abstrato? Será apenas um sentimento que a gente desconhece? Será alguma coisa quase inatingível, incompreensível e não vivenciável?  São Paulo escrevendo aos Romanos diz: “o Reino de Deus não consiste em comida e bebida, mas é justiça paz e alegria no Espírito Santo” (Rm 14,17).

A primeira e fundamental atitude de Jesus é a da absoluta obediência/dependência do Pai. Seu nascimento é anunciado por um anjo (= mensageiro de Deus), a fuga de José com a família é orientada por um anjo de Deus, ao ser batizado o Espírito de Deus sobre Ele afirma: “Este é o meu Filho amado...” (3,17b) e pelo mesmo Espírito Ele se deixa conduzir ao deserto e lá ficar quarenta dias e quarenta noites jejuando. É ao Pai que dirige suas preces e ensina a multidão a rezar ao Pai Nosso pedindo entre outras coisas que o nome de Deus seja santificado e que o reino de Deus seja instalado. A oração estará presente ao longo de toda a sua vida pública, sob a forma de louvor (11,25), na busca da benção (14,19 ; 15,36 ; 26,27), diante do medo da morte (26,39) mas completamente subjugado à vontade do Pai, e  na agonia da morte (27,46) ao recitar o salmo 22.

O ensinamento de Jesus é apontar a sintonia com a vontade do Pai:
            - “Venha o teu Reino (do Pai), seja feita a tua vontade, assim na terra como no  céu” (6,10);
            -”... entrará no Reino dos céus aquele que pratica a vontade do meu Pai” (7,21);
            - “Então os justos brilharão como o sol no Reino de seu Pai” (13,43), e ainda,
            - “Buscai em primeiro lugar, seu Reino e sua justiça, e todas essas coisas vos serão acrescentadas” (6,33) então:
                Buscai primeiro o Reino de Deus, e a sua justiça, e tudo o mais vos será acrescentado. Aleluia, Aleluia.   

A caminhada de Jesus aponta também para a instalação deste reino. Nascido em Belém (2,1), foge para o Egito (2,13), ao retornar vai morar em Nazaré na Galiléia dos pagãos (2,22-23). Da Galiléia vai até o Jordão para ser batizado (3,13), vai para o deserto (4,1).Volta para Galiléia, deixando Nazaré vai morar em Cafarnaum (4,12-13), com os discípulos vai ao país dos gadarenos (8,28), percorre cidades e povoados próximos (9,35), dirige-se a Nazaré ensina na sinagoga (13,53), retira-se para Tiro e Sidônia (15,21), retorna para as cercanias do mar da Galiléia (15,29), vai ao território de Cesaréia de Felipe (16,13), vai a um lugar a parte sobre uma montanha (17,1), retorna a Cafarnaum (17,24), encaminha-se para ir a Jerusalém (20,17), saindo de Jericó (20,29) entra em Jerusalém (21,10), saindo da cidade dirige-se a Betânia (26,6), com os discípulos vai ao Getsêmani (26,36), levam-no ao Pretório (27,27), chegando a um lugar chamado Gólgota... (27,33). Todo o itinerário de Jesus ocorre no ambiente marginal. É distante/fora do centro do poder; é aos marginais que Ele se encaminha. Ele levará outro poder aos que estão à margem do poder constituído. 

A mensagem e as ações de Jesus são direcionadas para que os excluídos (os Gadarenos, a Cananéia de Tiro e Sidônia e outros), sejam INCLUIDOS, os marginalizados venham para o CENTRO, os cegos (9,27-31; 20,29-34) VEJAM o Reino dos Céus instalado, os de mão atrofiada (12,9-13) tenham suas MÃOS ABERTAS para a instalação do Reino, os coxos (4,24; 11,5; 15,29-30) ANDEM instalando o Reino, os leprosos (8,1-3) tornem-se LIMPOS E PUROS neste Reino, os surdos (9,32-33; 11,5) OUÇAM, compreendam e propaguem o Reino, os mortos (9,18-19.23-26; 11,5) voltem a TER VIDA plena neste Reino, os pobres (5,3) TENHAM PARTE neste reino, mas que ninguém se escandalize por o Reino não ser instalado sem violência mesmo que Ele diga “Desde os dias de João Batista até agora o Reino dos Céus sofre violência, e violentos se apoderam dele” (11,12), mas pelo pleno sentido da fraternidade.

O discurso de Jesus que se inicia, com as Bem Aventuranças no capítulo cinco, se prolongará com grandes ensinamentos até o final do capítulo sete nos faz lembrar Moisés no Sinai; enquanto este recebera a lei da liberdade, Jesus passa a apontar a Lei da Fraternidade. Sua mensagem, entretanto não é só discurso, falácia vazia, conselhos... Sua mensagem é de atitudes inusitadas: “Ele tratava os cegos, os coxos e os paralíticos, os marginais e os pedintes com tanto respeito como o que era devido aos de posição e condição social elevada” (NOLAN, Albert. In Jesus before christianity). Os que não tinham valor naquela sociedade eram acolhidos por Jesus – as crianças como o modelo para entrar no Reino dos Céus; as mulheres não eram mais consideradas como inferiores como eram vistas naquele tempo; com elas Ele conversava, as curava, tocava, entrava em suas casas e entre seus discípulos a presença das mulheres era muito natural (um escândalo na época). O Reino de Jesus não é o da violência, antes é o Reino da absoluta igualdade entre todos e da dignidade dos oprimidos e/ou excluídos.

Além de apresentar o Reino dos Céus como o verdadeiro Império de Deus, através de seus prodígios e milagres e operando justamente fora do centro do poder, pois que ele se dedica aos marginalizados esquecidos e explorado, Jesus será mostrado no Evangelho de Mateus, como aquele que tem a perfeita sintonia com o Pai. Ele domina as forças da natureza caminhando sobre as águas (14,22-33) e acalmando com a voz e a mão uma Tempestade no mar (8,23-27). Ele alimenta, com a força da oração, cinco mil homens com cinco pães e dois peixes (14,13-21) e mais quatro mil homens com sete pães e alguns peixes (15,32-39); registre-se que o texto assegura que não foram contadas as mulheres e as crianças. Ele demonstra através de sua ação que o domínio efetivo é o domínio do Império de Deus. Todas as forças estão sujeitas à mesma vontade que Ele se sujeita: a vontade do Pai, pois só “entrará no Reino dos Céus aquele que pratica a vontade de meu Pai” (7,21). E a demonstração do reino dos Céus será por milagres, prodígios, domínio da forças da natureza e também como o Império que efetivamente importa é o de Deus; até o imposto da didracma cobrada pelos coletores está sujeita sob ação de Deus (17,24-27), assim como na disputa sobre o tributo a César Ele irá finalmente afirmar, como efetivamente tudo é de Deus (e o mais não importa) “daí a Deus o que é de Deus (22,21)”.

O Reino dos Céus está próximo (3,2. 4,17. 10,7) e o Reino de Deus já chegou até vós (12,28). Jesus apesar de toda adversidade implanta o Reino dos Céus e o demonstra ao transfigurar-se diante Pedro, Tiago e João e falando com Moisés e Elias, ouve e deixa ressoar “Este é o meu filho amado, em quem me comprazo, ouvi-o (17,5)”. Os que não O ouvem farão de trono uma cruz, uma coroa de espinhos, uma capa escarlate e um caniço por cetro, por não aceitarem a instalação do Reino. A morte, entretanto não impedirá a instalação do Reino/Império de Deus; ressuscitado Ele dirá aos discípulos: “Todo poder me foi dado no céu e sobre a terra”... fazei que todos se tornem discípulos e observem tudo quanto vos ordenei (28,18b-20A)”.  
 
Eu penso que imaginar que Deus Pai mandaria seu Filho se encarnar como nós para apenas morrer na cruz da forma mais cruel que os Evangelhos nos narram, é mero reducionismo ao um filicídio (assassinato de um filho) e assim mesmo tornado sagrado.  A morte de Jesus foi única e exclusivamente porque aquela sociedade, não compreendendo e não aceitando a instalação do verdadeiro Reino dos Céus, promoveu a eliminação de quem só queria implantar a igualdade de dignidade de todos os filhos de Deus, indistintamente de todos como iguais.

Os próprios seguidores de Jesus, àquela época, não compreenderam a mensagem. Na última hora o deixaram sozinho, “estavam ali muitas mulheres, olhando de longe (27,55)”. Só o compreenderão quando “repletos do Espírito Santo começaram a falar outras línguas... (At 2,4)”.

E nós que nos dizemos cristãos, será que um dia compreenderemos este Reino implantado por Jesus? O nosso reino poderá ser o mesmo Reino ensinado por Jesus? Será possível a absoluta igualdade, dignidade e fraternidade entre TODOS os filhos de Deus? E o que Ele ensinou e implantou pode se tornar real e verdadeiro?Será que não falta a nós aprendermos acerca deste Reino, e depois ensinarmos aquilo que pudemos aprender? E o que nós podemos fazer para compreender a essência desta mensagem do Reino? Poderemos compreender sozinhos? E sozinhos implantar?

Que o Espírito Santo nos ajude, nos ilumine, para compreendendo a mensagem, possamos implantá-la falando na língua que Ele permitiu que os Apóstolos falassem - a língua do Amor. E aí sim, também nós poderemos dar cumprimento à última determinação do Mestre “Ide, portanto, fazei que todas as nações se tornem discípulos,... ensinando-as a observar tudo o que vos ordenei. E eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos (28,19-20)”.

No reino apresentado por Jesus, não tem lugar para súditos que se dobrem diante do rei terreno. No reino que Jesus implanta e deixa à nossa disposição o irmão é SAGRADO e a plena fraternidade é a primeira condição/exigência. Neste Reino só tem lugar para IRMÃOS que se sentem servos e SERVOS que se sentem IRMÃOS.
Ao encerrarmos esta abordagem somos convidados a recitar a oração que nos foi dada por Jesus e que é a oração retratada no Evangelho de Mateus (6,9-13) pedindo entre outras coisas que venha a nós o reino do Pai.
Breno Senger

domingo, 28 de agosto de 2011

A MISSÃO NO EVANGELHO DE MATEUS – 5ª parte

A MISSÃO NOS SINÓTICOS
Sergio Bensur

1. RESUMO E OBJETIVO

Os Evangelhos Sinóticos não apresentam uma visão unitária da “missão”. Embora tendo um pano de fundo comum cada um deles tem seu próprio jeito de considerar a missão desenvolvendo uma perspectiva original e peculiar.
Por exemplo, um aspecto que em Mateus chama a atenção é que a missão de Jesus e da Igreja está profundamente enraizada nas tradições judaicas (por isso ele dá muita importância às Escrituras), mas ao mesmo tempo está aberta desde o começo ao mundo dos pagãos.
Marcos ao contrário mostra a missão de Jesus e dos discípulos dentro dum horizonte difícil e sombrio: é uma experiência de missão que deve enfrentar muitas dificuldades e sofrimentos.
Por sua vez, Lucas em sua ampla obra em 2 volumes – Evangelho e Atos dos Apóstolos – insere a missão no contexto da “história da salvação”. Ele mostra que a missão de Jesus de um lado marca o ponto culminante das expectativas messiânicas do povo de Israel, mas do outro lado inaugura os últimos tempos entregando à Igreja a tarefa de dar continuidade à missão de Jesus dilatando a sua mensagem até as extremidades da terra.

OBJETIVO

Dentro do limite de um “esquema de aula” evidentemente não é possível levar em conta senão alguns aspectos da “missão” porque o horizonte dos Sinóticos é amplo, complexo e diversificado. Por este motivo é necessário de alguma forma selecionar um texto. A análise do texto bíblico escolhido quer ser simplesmente um instrumento de leitura para mostrar como é possível reconhecer o enfoque de um determinado evangelista, sem ter naturalmente a pretensão de esgotar o assunto.
Geralmente Mt é conhecido como o evangelista do “grande mandato” missionário a partir do final: Mt 28,16-20. No entanto no início da atividade pública de Jesus é possível reconhecer alguns elementos que determinam o desenvolvimento da missão de Jesus ao longo do Evangelho.

2. TEXTO CENTRAL - Mt 4,12-25: INÍCIO DA ATIVIDADE DE JESUS.

Após a pregação de João batista, o Batismo (3,1-17) e a superação das tentações (4,1-11) Jesus está pronto para inaugurar a sua atividade pública a ser desenvolvida em 3 etapas:

1. Na Galiléia, Jesus deixa Nazaré para se estabelecer em Cafarnaum, onde proclama o Reino dos Céus (4,12-17).

2. A narração da vocação dos primeiros discípulos assinala desde o começo o núcleo da “igreja” como comunidade de irmãos (duas duplas de irmãos: Pedro e André, Tiago e João) (4,18-22).

3. O sumário das atividades de Jesus apresenta os temas principais do evangelho (4,23-25):
- Jesus anuncia (4,17. 23)
- Jesus ensina (4,23; 9,35)
- Jesus cura (4,23; 9,35).

Dessa forma Mateus realça a tripla MISSÃO DO MESSIAS: Mensageiro do Reino + Mestre + Salvador (Kérux + didáskalos + terapeuta), e a tripla MISSÃO DA IGREJA: anunciar + ensinar + libertar.

1) 4,12-17: Jesus inaugura o Reino a partir da Galiléia
O que logo salta aos olhos é o fato de Jesus iniciar a sua missão depois da prisão de João batista e na região da Galiléia. Em 1o lugar ele deixa Nazaré (lugar de sua vida, de seus trabalho e de sua família) para morar em Cafarnaum. Este elemento é muito significativo porque mostra que Jesus antes de pedir aos discípulos de deixar tudo para segui-lo, ele mesmo deixa o seu ambiente particular para se situar num ambiente aberto e universal.
Cafarnaum é um centro importante à beira do lago onde passa um dos caminhos principais que liga a Galiléia com Damasco, situado “nos confins de Zabulon e Neftali”: trata-se de uma região onde vive uma população mista e que, portanto, tem intercâmbio comercial e cultural com o mundo pagão. É o ponto de referência fundamental da atividade de Jesus.
O que é interessante notar é que o evangelista mostra que esta mudança de Jesus de Nazaré a Cafarnaum se realiza segundo o projeto de Deus, por isso Mt usa a “fórmula de cumprimento” citando a profecia de Is 8,23-9,1. Entretanto ele está em sintonia com a tradição evangélica comprovada pelos outros evangelistas (Mc 1,21; Lc 4,31; Jo 2,12).
Se na comunidade de Mt há judeu-cristãos contrários à abertura universal da mensagem evangélica, o evangelista deixa bem claro que se eles insistirem nesta posição estão colocando em jogo o sentido profundo da missão de Jesus.
Para Mt Jesus não é só o Messias de Israel, mas é também o Salvador do mundo, pois as próprias Escrituras indicam que esta perspectiva universal já estava presente na tradição de Israel.

2) 4,18-22: o núcleo de uma comunidade de irmãos
A narração da vocação dos primeiros discípulos revela a presença de um esquema narrativo muito simples que provavelmente, a partir de recordações históricas, a comunidade cristã transformou num “modelo” referencial teológicocatequético.
Trata-se de duas cenas paralelas que narram a vocação/missão dos primeiros discípulos (duplas de irmãos): Jesus caminhando à beira do lago da Galiléia vê alguns homens que trabalham como pescadores, os chama e imediatamente eles o seguem.

Alguns detalhes chamam a atenção:
a) O evangelista de acordo com uma visão teológico-catequética dos fatos (não quer fornecer uma reconstrução histórica exata) insiste na relação pessoal com Jesus. Em 1o lugar aparece o tema da itinerância de Jesus: o fato de caminhar à beira da praia lembra o êxodo e a passagem da escravidão para a liberdade. Em 2º lugar por 4 vezes é repetida a palavra irmão mostrando desde o começo que Jesus quer constituir uma “comunidade de irmãos” onde a fraternidade seja a expressão máxima da liberdade!

b) A expressão: “vinde atrás de mim” indica antes de tudo a iniciativa de Jesus: ele não é pura e simplesmente um modelo a ser imitado, mas é início e o fim do “caminho” além de ser o companheiro da caminhada. Mas isso revela também a identidade do discípulo, o qual não deve imitar, mas “seguir” a Jesus que significa literalmente “ir atrás dele!”.
Inclusive o termo “imediatamente” assinala um momento decisivo que marca
uma reviravolta na própria vida (em seguida haverá: paradas, dúvidas, infidelidades, contradições, etc.). Os discípulos deixam tudo: os meios de trabalho (redes, barco) patrimônio e família (o pai).

c) Enfim, a expressão “pescadores de homens” indica que a missão não se limita ao povo de Israel, mas se estende a todos os povos numa dimensão realmente universal.

3) 4,23-25: Sumário da atividade de Jesus

O evangelista apresenta o resumo da atividade de Jesus realçando 3 aspectos:
ensinamento + proclamação + curas. Em seguida a narração desenvolve estes motivos que serão lembrados também no fim desta secção (9,35).

1) O ensinamento de Jesus evidentemente não é uma palavra qualquer, mas possui uma força e um significado preciso: apresenta exigências éticas e interpreta a Torah revelada no AT. Com efeito, mencionando o ambiente da sinagoga Mt quer indicar a ligação constante com a Escritura e com o lugar onde era lida e proclamada publicamente.

2)A proclamação (anunciando o evangelho de Deus) é um anúncio alegre que retoma as expressões do Segundo-Isaías: o profeta anunciava a vinda de um mensageiro que proclama a salvação (Is 52,7). No texto profético “anúncio alegre” e “reino de Deus” aparecem juntos, como no texto de Mt. Mais tarde um outro profeta, o Terceiro-Isaías fala de um misterioso mensageiro divino que exprime pessoalmente a própria missão nesses termos: “O Espírito do Senhor está sobre mim...” (Is 61,1). Mt retomando o pano de fundo profético quer indicar que Jesus é o mensageiro definitivo do Anúncio alegre. Deus decidiu soberanamente de salvar a humanidade. Com efeito, mais adiante, respondendo aos discípulos de João Batista Jesus aplica a si mesmo o texto de Is 61,1 (11,5).

3) As curas. Os gestos libertadores de Jesus mostram a eficácia e a credibilidade da Palavra. Do outro lado a Palavra mostra através dos gestos o seu significado autêntico. E evangelho fala de dimensão “terapêutica” pois de fato as curas são sinais concretos do cumprimento das promessas messiânicas (10,1.7s.; 11,4-5).

4)Além disso, Mt assinala que a fama de Jesus se espalha pela Síria ou segundo Mc 1,28 pela Galiléia e regiões circunvizinhas. Também aqui Mt quer mostrar que Jesus não se limita a um pequeno grupo, mas a sua mensagem deve alcançar todo o povo e espalhar-se por toda a região. O último v. retoma a lista das regiões das quais provinham os ouvintes de João Batista (3,5), mas acrescenta a Galiléia, cuja importância já foi frisada pela citação de Is 8,23-9,1, e menciona a Decápole região considerada pagã. O cenário está finalmente preparado para desenvolver a atividade messiânica de Jesus através da Palavra (Mt 5-7) e de Gestos libertadores (Mt 8-9).

3. CONCLUSÃO

1) Jesus deixa Nazaré para se situar em Cafarnaum num contexto aberto aos pagãos, centro de referência de toda a sua atividade. Esta mudança é interpretada à luz das Escrituras (Is 8,23-9,1) e está em perfeita sintonia com os outros evangelistas.

2) Mt deixa bem claro que a missão de Jesus está aberta ao mundo pagão desde o começo. Quem, portanto, coloca em discussão esta abertura universal aos Gentios, está colocando em jogo a missão de Jesus e o seu significado salvífico.

3) A narração da vocação dos primeiros discípulos mostra que a missão de Jesus retoma a tradição bíblica (o tema do êxodo) e revela o seu projeto de constituir uma “comunidade de irmãos”. Com efeito, no fim do evangelho os discípulos (igreja) receberão o imperativo de “fazer discípulos/irmãos todos os povos” (28,19-20), mas desde o início, essa missão universal está claramente indicada pela expressão “pescadores de homens”.

4) O “sumário” (vv.23-25) apresenta os aspectos característicos e fundamentais da atividade de Jesus: ele ensina a partir do núcleo fundamental da experiência de Israel: interpreta a Torah de acordo com a comunhão de vida estabelecida por Deus na Aliança. Por isso Ele proclama o Evangelho de Deus e realiza gestos de cura.

5) Enfim assinalando que o ensinamento de Jesus em palavras e gestos se espalha cada vez mais, Mt volta a insistir que a missão de Jesus e dos discípulos não se limita a um pequeno grupo, mas tem desde sempre um alcance universal. Em resumo se destacam os Temas típicos de Mt:
a) o cumprimento das promessas proféticas do AT no NT;
b) a abertura aos pagãos;
c) a constituição de um “novo” povo de Deus (universal e fraterno);
d) os discípulos recebem a missão de levar adiante a mesma missão de Jesus (pescadores de homens);
e) a proclamação do Reino através de gestos de misericórdia para todos os que sofrem.

4. PERGUNTAS, TAREFAS, APROFUNDAMENTOS

Escolher e analisar outros textos dos Sinóticos do ponto de vista da missão de
Jesus e da comunidade cristã.
. Qual é a relação de Jesus com o Judaísmo contemporâneo?
. Como e em que ele supera a tradição judaica para abrir-se ao mundo dos Gentios?
. Em que consiste exatamente a missão dos discípulos?

5. BIBLIOGRAFIA

L’EPLATTENIER, C, Leitura do evangelho de Lucas, São Paulo: Paulinas, 1993.
MATEOS, J - CAMACHO, F, O evangelho de Mateus, São Paulo: Paulinas, 1993.
MATEOS, J – CAMACHO, F, Marcos, São Paulo: Paulus, 1998.
OVERMAN, J. A, Igreja e comunidade em crise, São Paulo, Paulinas, 1999.
OVERMAN, J. A, O evangelho de Mt e o judaísmo formativo, São Paulo: Loyola, 1997.
SCHNACKENBURG, R, Jesus cristo nos 4 evangelhos, São Leopoldo (RS): Unisinos, 2001.
VV.AA, Evangelhos Sinóticos e Atos dos Apóstolos, São Paulo: Paulus, 1986.
VV.AA, Leitura do Evangelho de Mt (Cadernos Bíblicos), São Paulo: Paulus, 1982.

sábado, 27 de agosto de 2011

A MISSÃO NO EVANGELHO DE MATEUS – 4ª parte

COMENTÁRIO AO EVANGELHO DE MATEUS 10,34 – 11,1
Ervino Martinuz

O Discurso da Missão do capítulo 10 do Evangelho de são Mateus, oferece muitos tópicos para poder realizar a missão dos discípulos e missionários de Jesus Cristo. Este evangelho nos apresenta a parte final deste Discurso da Missão.
• Mateus 10,34-36:
Não vim trazer a paz, mas a espada. Jesus fala sempre de paz (Mt 5,9; Mc 9,50; Lc 1,79; 10,5; 19,38; 24,36; Jo 14,27; 16,33; 20,21.26).
Então, como entender a frase do evangelho de hoje que parece afirmar o contrário: “Não penseis que vim trazer paz à terra;não vim trazer a paz, mas, sim, a espada”. Não! Jesus não quer nem a espada (Jo 18,11), nem a divisão. Quem a união de todos na verdade (cfr. Jo 17,17-23). Naquele tempo, o anúncio da verdade que ele, Jesus de Nazaré, era o Messias tornou-se motivo de muita divisão entre os judeus. Na mesma família ou comunidade, alguns eram a favor e outros radicalmente contra. Neste sentido a Boa Nova de Jesus era realmente origem de divisão, um “sinal de contradição” (Lc 2,34) ou, como dizia Jesus, ele trazia a espada. Assim entende-se a advertência: “De fato, vim separar o ficho de seu pai, a filha de sua mãe, a nora de sua sogra. E os inimigos do homem serão os seus próprios familiares”. Era o que estava acontecendo, de fato, nas famílias e na comunidade: muita divisão, muita discussão, conseqüências do anúncio da Boa Nova entre os judeus daquele tempo, porque alguns aceitavam, outros negavam. Hoje acontece a mesma coisa. Muitas vezes, aí onde a Igreja se renova, o apelo da Boa Nova torna-se ‘sinal de contradição e divisão. Pessoas que durante muitos anos viveram comodamente na rotina de sua vida cristã, não querem ser incomodadas pelas ‘inovações’ do Vaticano II. Insatisfeitas com as mudanças, usam toda sua inteligência para encontrar argumentos em defesa de suas opiniões e para condenar as mudanças, considerando-as contrárias a tudo o que elas pensas ser a verdadeira fé.
• Mateus 10,37:
Quem ama seu pai e sua mãe mais do que a mim, não é digno de mim. Lucas cita esta mesma frase, mas muito mais exigente. Afirma literalmente: “Se alguém vier a mim, e não odeia seu pai e sua mãe, seus filhos, seus irmãos, as suas irmãs, e até mesmo a própria vida, este não pode ser meu discípulo” (Lc 14,26). Como entender esta afirmação de Jesus com outra em que manda observar o quarto mandamento: amar e honrar o pai e a mãe? (Mc 7,10-12; Mt 19,19). Duas observações: (a) O critério fundamental sobre o qual Jesus insiste sempre é este: a Boa Nova de Dio deve ser o valor supremo da nossa vida. Não pode existir na vida um valor maior. (b) A situação econômica e social na época de Jesus era tal que as famílias viam-se obrigadas a se fechar em si mesmas. Não tinham mais as condições de respeitar as obrigações da convivência humana comunitária, com por exemplo: a partilha, a hospitalidade, a convite à mesa e a acolhida dos excluídos. Este fechamento individualista, causada pela situação nacional e internacional, trazia distorções: (*) Tornava impossível a vida em comunidade; (**) Limitava o mandamento "honra o pai e a mãe" exclusivamente no pequeno núcleo familiar e não mais na grande família da comunidade; (***) Impedia a manifestação plena da Boa Nova de Deus, porque se Deus é Pai/Mãe nós somos irmãos e irmãs uns os outros. E esta verdade deve encontrar sua expressão na vida em comunidade. Uma comunidade viva e fraterna é o espelho do rosto de Deus. A convivência humana sem comunidade é um espelho rachado que desfigura o rosto de Deus. Neste contexto, o pedido de Jesus: “odiar pai e mãe significava que os discípulos e as discípulas deviam superar o fechamento individualista da pequena família sobre si mesma, e ampliá-la à dimensão da comunidade. O próprio Jesus colou em prática o que ensinou aos outros. Sua família queria que ele se fechasse sobre si mesmo. Quando lhe dissera: “Olha, tua mãe e teus irmãos estão aí fora e estão à tua procura!”, ele respondeu: “Quem é minha mãe e quem sã meus irmãos?” e olhando ao redor de si, disse: “Eis minha mãe e eis meus irmãos! Quem realiza a vontade de Deus, este é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mc 3,32-35). Alarga a família! Esta era e continua a ser até hoje para a pequena família o único caminho para poder conservar e transmitir os valores nos quais acredita.
• Mateus 10,38-39:
As exigências da missão dos discípulos. Nestes dois versículos Jesus dá conselhos importantes e exigentes:
(a) Carregar a cruz e seguir Jesus: Quem não carrega sua cruz e não me segue não é digno de mim. Para perceber toda a dimensão deste primeiro conselho é bom ter presente o testemunho de São Paulo: “Quanto a mim, que eu me glorie somente na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo! Por ele, o mundo está crucificado para mim, como eu estou crucificado para o mundo” (Gl 6,14). Carregar a cruz supõe, até hoje, um corte radical com o sistema iníquo em vigor no mundo.
(b) Ter a coragem de dar a vida: “Quem tiver encontrado sua vida, vai perde-la, e quem a tiver perdida por minha causa, a encontrará”. Sente-se realizado na vida só quem é capaz de doá-la completamente aos outros. Quem, no entanto, que conservá-la, a perde. Este segundo conselho confirma a experiência humana mais profunda: a fonte da vida está no dom da vida. Dando é que se recebe. Se a semente de trigo não morrer... (Jo 12,24).
• Mateus 10,40:
A identificação do discípulo com Jesus e com o próprio Deus. Esta experiência assim tão humana de doação e de entrega recebe aqui um esclarecimento, um aprofundamento: “Quem vos recebe, a mim recebe; e quem me recebe, recebe aquele que me enviou”. No dom total de si, o discípulo se identifica com Jesus. Aí acontece o encontro com Deus, e Deus se deixa encontram com quem o busca.
• Mateus 10,41-42:
A recompensa do profeta, do justo e do discípulo. O Discurso da Missão termina com uma frase sobre a recompensa: “Quem acolhe um profeta como profeta, terá a recompensa do profeta, e quem acolhe um justo como justo, terá a recompensa como justo. E quem tiver dado também só um copo de água fresca a um destes pequenos, porque é meu discípulo, em verdade vos digo, não perderá a sua recompensa”. Nesta frase a sequência é muito significativa: o profeta é reconhecido pela sua missão como enviado por Deus. O justo é reconhecido pelo seu comportamento, pela sua maneira perfeita de observar a lei de Deus. O discípulo é reconhecido por nenhum qualidade ou missão especial, mas simplesmente pela sua condição social de humildade e pequenez. O Reino não é feito de coisas grandes. É como uma casa muito grande que se constrói com tijolos pequenos. Quem despreza um tijolo dificilmente construirá a casa. Também um copo de água serve como tijolo na construção do Reino.
• Mateus 11,1:
O final do Discurso da Missão. Quando Jesus terminou de dar estas instruções a seus discípulos, partiu daí a fim de ensinar e pregar nas cidades deles. Agora Jesus parte para colocar em prática o que ensinou. É que veremos nos próximos capítulos 11 e 12 do evangelho de Mateus.

PARA UMA AVALIAÇÃO PESSOAL

• Perder a vida para ganhar a vida. Tiveste alguma experiência de te sentires recompensado/a por um gesto de doação ou de gratuidade aos outros?
• Quem vos recebe a mim recebe, e quem me recebe aquele que enviou. Para e pensa o que Jesus afirma aqui: Ele e próprio Deus se identificam contigo.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

MISSÃO NO EVANGELHO DE MATEUS - 3ª parte

O DISCURSO SOBRE A MISSÃO (Mt 10,1-42)

Jesus chama os Doze e os envia: deles nascerá a Igreja! O que Jesus diz aos Apóstolos vale para os seus sucessores em todos os tempos; vale até mesmo para cada cristão, discípulo de Jesus:
• eles devem pregar a todos e a todos levar a paz do Reino (aqui Jesus manda pregar somente a Israel (10,5-7); depois da ressurreição mandará a todo o mundo (28,19-20). Todos serão julgados pela atitude diante dos enviados de Jesus (10,5-16)
• os missionários serão sinal de contradição, como Jesus (10,17-25)
• não devem ser covardes nem medrosos (10,26-33)
• se Jesus é sinal de contradição, os discípulos também o serão e deverão segui-lo nisso (10,34-39)
• onde estiver um anunciador do Reino, aí estará o próprio Jesus (10,40-42).

MISSÃO DE ENSINAR

Missão deixada pelo Ressuscitado (28,16-20)
O Evangelho de Mateus termina com a ordenança de Jesus para que ensinarmos as nações e a garantia de que ele estará conosco até o fim:
Ide, pois, fazer discípulos entre todas as nações, batizando-as em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; ensinai-lhes a observar tudo o que vos tenho ordenado...

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

MISSÃO NO EVANGELHO DE MATEUS - 2ª parte

A MISSÃO NASCE NO CORAÇÃO DE DEUS

         A vida e comunhão de amor da Santíssima Trindade é a origem, a fonte, o fundamento e fim último da missão. Desde que nos foi revelado o mistério trinitário de Deus, sabemos que a categoria missão é essencial para entender o próprio Deus. Deus é missão e o primeiro ato dessa missão é a criação. Nela o Pai, através da Palavra (Logos) e do Espírito (Ruah), cria o paraíso terrestre, com todas as suas realidades. Ao criar o ser humano o criou homem e mulher e confiou-lhe uma missão específica: assumir em obediência sua condição de criatura, viver a comunhão formando um só corpo, gerar vida, cuidar e cultivar o paraíso terrestre.
         Contemplando a Trindade percebemos que Jesus tem consciência de ser o “enviado” ao mundo pelo Pai. O Pai também envia o Espírito, tanto no Antigo como no Novo Testamento, que se faz presente no mundo em diversas ocasiões e de diversas formas. Após a Ressurreição, Pai e o Filho enviam o Espírito para que conduza a missão da Igreja. Este dinamismo revela que a missão faz parte do ser divino.

A MISSÃO NO NOVO TESTAMENTO

         No Novo Testamento não temos a descrição da missão como a temos hoje. Nem mesmo o termo missão é empregado. Porém, são utilizadas muitas expressões que se referem à dinâmica da missão, entre as quais encontramos com freqüência os verbos ungir, consagrar, enviar, anunciar, pregar. Exemplos: pregar a conversão (Mc 3, 1; Lc 3,3), proclamar o Reino (Lc 9,2), anunciar a Palavra de Deus (At 13,5), pregar que Jesus é o Filho de Deus (At 9,20).
         A finalidade da missão, na perspectiva do NT, é testemunhar e anunciar a experiência do amor de Deus que se manifesta na vida, na história e, de maneira definitiva, na vida, morte, ressurreição e glorificação de Jesus.

ESQUEMA MISSIONÁRIO DO NOVO TESTAMENTO

CARACTERÍSTICAS DO MISSIONÁRIO:

- É alguém que foi escolhido, chamado e enviado, no caso de Jesus pelo Pai, por parte de Jesus, ou por parte dos Apóstolos e da comunidade (Mt 4,18-22; 10,16).
- É aquele que deve anunciar, pelo testemunho de vida e pela palavra, a Boa Nova do Reino e do Cristo Ressuscitado (Mc 6,7-13; 1Cor 15,1-4).
- É aquele que tem poder de realizar sinais que comprovam a autenticidade da missão recebida (At 5,12-16; 14,3; 19,11-12; Rm 15,18-19).
- É alguém que realiza a missão numa atitude de serviço e entrega total àquele que o enviou (At 1,17,25; 20,22-24; 2 Cor 11,23-29).
- É alguém que recebe o Espírito Santo e se deixa guiar por Ele (Mt 10,16; Jo 20,22).
- É aquele que caminha em direção da humanidade, não se acomoda, mas faz de tudo para que todos tenham a graça da redenção (Mt 28,18-20; At 22,21; 26,17-18).

TEXTOS:

Missão de Jesus – Mt 4,23-25
Origem da Missão – Mt 9,35-38
Sermão da Missão -  capítulo 10 (missão dos apóstolos)
Missão de João Batista – Mt 11,7-15
Missão a serviço da vida – Jesus liberta e protege a vida de todos os males: do abandono (Mt 9,36); da lei que oprime e mata (Mt 5,38-42); da injustiça (Mt 5,20).
Missão deixada pelo Ressuscitado (Mt 28, 16-20) – A missão tem como primeiro objetivo “fazer discípulos” mediante a pregação e o ensino daquilo que Jesus fez e ensinou. O endereço da missão é o mundo, são todos os povos e culturas. Jesus diz: “Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura”.
Portanto a missão da  igreja é evangelizar (DA 1.3–30)

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

MISSÃO NO EVANGELHO DE MATEUS - 1ª parte

MISSÃO A SERVIÇO DA VIDA PLENA

            A V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe realizada em Aparecida do Norte, em 2007, colocou no centro da reflexão o tema da Missão. Ele é muito atual, porém não é novo.
            Se lermos atentamente a Bíblia, veremos que a missionariedade é o fio condutor que perpassa toda a história da salvação desde o agir trinitário na criação, passando pela eleição e caminhada do povo que Deus escolheu para ser seu povo, pelos profetas e pelo envio de seu Filho Jesus.
            Se tomarmos a história da Igreja, do nascimento aos dias atuais, também veremos que a missão é o fio condutor dessa caminhada.
            Diante do apelo da igreja da América latina e do Caribe de todos serem discípulos e missionários, convém aprofundar alguns aspectos da missão para clarear as razões do ser missionário.

O QUE É MISSÃO?

            Quando falamos ou ouvimos falar de missão, normalmente, pensamos logo em encargo, tarefa, incumbência ou serviço a ser realizado, e em diferentes tipos de missão: espacial, científica, cultural, militar, de paz. Pensamos, também, em alguém enviado para tal tarefa ou serviço.
            Quando ouvimos falar de missão no sentido religioso e eclesial, muitas vezes, vem em nossa mente alguém que deixa sua terra e vai a uma terra distante para falar de Deus, converter ao cristianismo ou organizar a Igreja onde ainda não existe ou está em formação. Vêm à mente, ainda, algumas pessoas: religiosas, religiosos, sacerdotes ou leigos que se dedicam a alguma atividade que dizemos que é missionária. Em outras situações vem a idéia de pessoa que fazem tudo para “converter adeptos” a determinada igreja ou religião.
            Este modo de pensar tem sua razão de ser. Contudo, a missão engloba uma realidade ampla e complexa que necessita ser aprofundada e que diz respeito a todos os batizados.
            Como horizonte amplo, podemos dizer que a missão é a mediação salvífica de Deus na história, pois Deus quer que todas as pessoas se salvem. Em outras palavras, quer que todos experimentem seu amor e participem plenamente de sua vida: “que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10). Ou conforme a Conferência de Aparecida, que todos participem do “Reino da vida que Cristo veio trazer” (DA 358).